sábado, 30 de julho de 2011

Pintura de António Carmo - A Rosa

TRAVESSIA





ATRAVESSEI O FRUTO COM O LÍQUIDO DOS VERSOS 

E DE SEGUIDA LIBERTEI O VENTO 

DAS NUVENS E DAS AVES 

PROCUREI A MATÉRIA QUE HÁ NA ALMA

SEM CRUZAR AS MÃOS

SEM QUEBRAR OS JOELHOS

  

ATRAVESSEI A NOITE LUNAR COM AS PALAVRAS

ESCRITAS NA SOMBRA

COM0 OS FLUXOS CADENCIADOS DA LUZ

REPETINDO AS PULSAÇÕES DO SISTEMA SOLAR

ADORMECENDO NA LEZIRIA

ONDE NASCEM AS COISAS MATERIAIS

SILENCIANDO OS MUROS NO POENTE



ATRAVESSEI A CINZA DA MADRUGADA

ONDE RASTEJAM OS VENTRES VAZIOS

PREDADORES DA HUMIDADE

QUE REVERTE DAS MÃOS ALADAS

ONDE NÃO SE CATIVAM DEUSES

E OS GESTOS SE PERDEM SEM RETORNO

NO INTERIOR DOS CAULES AMORTALHADOS



ATRAVESSEI OS DESEJOS

COM A NEVE CAINDO DAS MÃOS

E OS ABUTRES POR PERTO


segunda-feira, 25 de julho de 2011

D. Quixote



na longitude abissal de um grito

galopei

a saga das tempestades


amordacei

ventos e astros

venci

batalhas nas quimeras



remendei panos de velas

em moinhos mutilados

pelo orvalho dos sonhos

e das sombras emaranhadas

como fantasmas nos laivos dos olhares



combati de novo

contra as trevas

na hora do zénite

decepei monstros em duelos

e paradoxos em estocadas

de mestre de espadachim



despojei vertigens

flagelando a opacidade dos templos



faço agora o espólio dos estigmas

que me ficaram no pó

para aquém da girândola do vento

domingo, 24 de julho de 2011

Fado (pintura de António Carmo)

Sons gémeos


gui

tarra

si

bi

la

n

do

nos gémeos

sons gemidos do

cordame de artérias

 tangentes como corpo em sexo

tocando a noite na fluidez

das penumbras

da viela


sábado, 23 de julho de 2011

Rodopiando (pintura de António Carmo)

Cacofonia (a A.Ramos Rosa)




A cacofonia da poesia

baila bailando

com os tons dos sons

dum corridinho corrido
 

puladinho


marafado
 

cantado dançado saltado

com o mandador a mandar

e a roda

à roda

no baile mandado

com os cus no ar

das moças moçoilas ainda sem fado

e com muito a sonhar

mas só no altar

rodando mostrando

o alto da saia

e vá de virar

que as ancas girando

redondas de ondas

já fazem pensar

não há que parar

que os olhos dos velhos

relembram os tempos

e os lábios dos moços

já bailam beijando

a cacofonia

   da moça moçoila

                                                           em cada folia.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Entre a Terra e a Lua

Vou partindo inacabado na vastidão
em gestos intemporais e divergentes
como os signos das palmas das mãos


Vou indo
sem saber a distância
e a rota azimutal do paradoxo azul
sem saber da origem e do fim
da simetria do tempo e da matéria
feita na têmpera das cadivas noites
de mistura verve e transe
no tropel do sangue e do nirvana das estrelas


Vou repartindo a voz e o seu timbre
nos quadrantes e quadrívios da razão
como sítio e simbiose
entre o corpo e a luz
como lago agitado
pelo lançamento de um pequeno seixo
que faz as ondas


Vou indo como vento
viajeiro dos gestos
que agitam as velas e os sons
cavalgando o sopro andarilho
de translação e desassossego
deste espaço de sítio e palco
onde o tempo é o chão


Vou partilhando a lama a vasa e a turfa
ilutado nos pântanos
e vou descendo as colinas
das minhas montanhas
onde renasço do pólen e do pó
em réplicas de palavras e vozes
que decantam a geada
para fazer o mel das noites
e o renascer das manhãs nos lugares


Vou bolinando as encruzilhadas
e semeando sílabas
neste espaço cislunar
onde se dilui a nitidez do rosto
em esboço úmbrico de máscara
e amálgama de glóbulos e éter


Vou indo
sem encontrar as palavras certas
que queria deixar na partida.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pintura de António Carmo

PARTILHA DO CHÃO

Uma árvore
pode ser a reflexão
do corpo material que tomba
frente ao espelho azul


Senti hoje a crueldade
de derrubar uma árvore envelhecida
que eu próprio plantei
há anos


Senti que eu próprio também envelheci
cúmplice com o tempo
que levei comigo
entranhando o lenho
no verde de cada primavera
de que farei cinza
eterna


e da cinza
farei o negro da terra
flutuante em cada manhã
que irei habitar
adivinhando a mistura que farei
com a minha própria cinza
partilhando o mesmo chão.