quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Caminhos duplos


Sinto o feitiço remoto
fluindo da memória do vento sulano
que me liberta
e aos membros fugazes
como caprichos de deuses ignívomos
em transe e alquimia
no uso do tempo

sinto o feitiço da poeira cálida
na leiva de astros cambiantes
e este cheiro imago a terra tangível
de mistura e ilusão
nas palavras institivas dos poetas
atalhando a alma ilutada

sinto o corpo transumante
e iço a âncora
e navego à bolina
com o vento de viés
cingido aos braços
desfaço-me do lastro sevandija
e sigo outros rumos que não sei
vadeando acamptos atalhos senoitados
onde passo alternadamente
como contrabandista do próprio ser
dissipando a raia nas águas do rio
dos inóspitos caminhos duplos

sinto o recomeço da travessia
na dúplice geometria dos planetas
irmãos de todos os exílios e desertos
onde o homem é apenas o itinerário
companheiro da própria sombra
e das dúvidas
que formam as brisas e as dunas
que sinto no feitiço
declinado na voz.


terça-feira, 30 de agosto de 2011

Por dentro das distâncias


Como uma guitarra tocando no silêncio
a vida
é um grande lago
volúvel como os lábios tenros
perdidos na seiva dos séculos
outrora rios
de longínquas águas e metais

azul de distâncias
nas manhãs sem rasto
como panos de velas escondidas
transviando as ventanias
no lenho dos corpos acotados

transformação da pele e do bronze
no vazio tétrico das coisas sombrias
e outras loucuras adejantes
pulsadas deste esparso chão de mosto
que vem dos deuses
e das trovoadas por dentro das distâncias.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Pintura de António Carmo

Em algum lugar

Há sítios inclinando o luar
para conjugar os olhos
as pedras
e os mastros
coisas das sombras
e dos barcos que deixei partir
à deriva
em distâncias
como se fossem aves migradouras
coisas das misturas das luzes
em lugares e faróis
onde a maresia ficou
parada
sobre as algas na praia
das coisas de mares longos

em algum lugar

eu devo ficar olhando a terra
e os caminhos pisados
deixando o odor da vida
por onde a chuva passou
nesta viagem
repetindo a luz
não há utopias no chão baço
apenas a rasoura dos meus pés
marcando o nível do barro

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Ser gente ou chão


Vou habitando cada tijolo
ou terracota
construindo os muros
e vivo o seu calor de barro
penetrando o  tempo

dessa argila seca
pelo passar dos ocasos
conheço cada profecia de caos
e de fuga

conheço os templos dos deuses
feitos pelos homens
nesse pó ressequido
com o calor das maõs
encontro os dilemas
de ser gente
ou ser chão.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Do lado de cá


Fechei os olhos e segui
a tato
por todos os quadrívios
como se o espaço místico
fosse a minha câmara escura
onde o exterior
é apenas um voltar ao corpo

uma imagem que não sinto
nem conheço a geometria


senti que o instante
é mais escuridão e tempo
senti que a distância é menos espaço
onde a matéria se conhece na neblina
pelo impacto na derme lisa

senti que é necessário
fechar a teia e o orvalho
dos olhos
no fluir da utopia da luz
para ver do lado de cá
do espelho alucinado

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A preto e branco


Na câmara escura
que é a noite novilúnia
recolho momentos vagos
e imagens
para transcender o tempo volátil


gravo a superfície da pele
transitória
como os cristais argenteos no celuloide
ou no vidro
espero na alquimia
da luz  em sizíngio com a alma e o corpo
nas sonâmbulas negritudes
onde se constroiem as sombras
e as penumbras do meu simples auto retrato
indecifrável
no preto e branco
onde se fossiliza  o tempo.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Dançando com as barcas


Dedilho as cordas da distância
com a saudade por amante
aquela que me escuta o canto
que desfaço na praia salgada
tanto rasa esperando a baixa-mar


agarro todos os sons soltos das marés
sulcando o sul
e aceito o vento e a sua liberdade
de não chegar a porto marcado


com os sons e os ventos
faço as manhãs de água
dançando com as barcas e o cais


desfaço as mágoas que trago no lastro
mutando os açoites da brisa
no bronze do rosto

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Algumas barcas



Algumas barcas
apenas são os vultos
com dedos lembrando velas
no salitre das tempestades
onde naufrago distante

algumas barcas
são o sopro que resta
dos espaçados mares
com travos de rum e bagaceira
misturando os poros e a pele

  

algumas barcas
apenas são mistério
das noites desiguais
fazendo as ilhas e os olhos
que trago soltos.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Pastor de ventos



Imune ao tempo que passa de raspão
como o sol que se move lentamente para oeste
sou pastor de ventos
esfarrapados como as gualdrapas
do meu capote de remendos e fiapos

ao todo
terei um rebanho de mil brisas
e mil nimbos
em pastagens de vários quadrantes
montanhas e lezírias
que diviso de todos os azimutes
no meu lugar imago
de socalcos e rosmaninhos

vagueio os olhos
sitibundos pelos medronhais
perdido nos impulsos dos instintos
ouvindo os sons gemelgos
das gaitas e flautas dos sopros do ar
atraindo musas insondáveis
que cantem comigo
as palavras
criadas no vento

domingo, 14 de agosto de 2011

Pintura de António Carmo

Parti no pó


Parti incerto
vagabundo como tu
porque eu também sou vento
sem quandrantes ou fronteiras
sobre os rios
e o chão por dentro
sobre os silêncios
alcançados dos mares
viajantes além

parti errante
livre como tu
porque eu também sou o ocre
de que se faz o tempo
e se constroi a magia do grito
ressoante nos ecos
que transformam a pedra

parti no pó do caminho
cimentado em argila
para limitar os passos

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Na morte do Poeta (Eugénio de Andrade)


Aquilo que nos prendia à terra
quando os templos se faziam de pedra
talvez não tenha existido na luz
nem as árvores tenham renascido
no éter de cada manhã

talvez o verbo em cada sítio
tenha sido o tempo imoto
desafiando a indecifrável vastidão
da ambiguidade das palavras
na repartição do lastro da medula

talvez os passos imotáveis e firmes
isentos de metas semoventes
tenham multiplicado as sílabas
para vencer as umbrantes montanhas

talvez  a escuridão sonâmbula dos astros
redescobrindo a distância
nos olhos frementes
prolongando a planície itinerante
deixe os sedimentos das ideias
na fímbria mutável dos horizontes
tão longos e incumbentes

talvez de todas as palavras proferidas
se possam tecer velames
em naus de juncos urdindo canções
no vento redescobrindo o infinito
da voz repetível


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Gestos

Não é o fumo enegrecido
que me faz cegar
que me faz parar

mas sim o fogo
flamejante de ódio
contido nas palavras que envenenam
matando as ideias e alucinando o sangue
para corromper os gestos

não são os gritos ululantes
que me fazem ouvir
que me fazem sentir
mas sim o silêncio
em palavras sonoras
fundindo as ideias e o sangue
para fazer a transição dos gestos

não são os fósseis duros
cimentados nos fundos dos rios
que fazem a marca de água
em silhueta e neblina
nos meandros da medula
nem os sedimentos mestiços de paisagens
ou os signos dos deuses e flautas
em confronto de demos e tridentes
que fazem a derme onde abrigo os gestos

não são os meus sósias deambulantes
sobre a terracota misturando as horas
na profundidade do meu lenho
que fazem a eternidade das cinzas
restantes dos gestos

não são as longitudes do chão acampto
que fazem os trilhos dos antípodas
ou o orvalho nos olhares
tecendo o linho nas várzeas estéreis
onde o sopro vertical habita
que me fazem esgotar
os infusos gestos

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Caleidoscópio alucinado


Posso retomar os caminhos
embages pelo ar
na vastidão dos instantes

abrindo as asas
migrantes
desfraldo velas
alígenas
caminhando a contra-vento
como rebelde alífugo

posso retomar a alternância do tempo
pelo mar
em qualquer álveo
que está a navegar por mim
em mistura bívia de membros énidos
e seguir
como náufrago deambulante
em todas as enseadas estreitas
e fronteiras
sem saber para onde vou

renovo os braços
em cada azimute
sabendo que não vou só
apesar da indefinição dos ecos
ressoados
nos impulsos coleantes nas artérias

posso recomeçar
todos os arcanos caminhos
de chão hiante partilhando o instinto
que desbrava a selva

posso recontar o tempo
pela voz da ampulheta
nos seus rios imanes
nas correntes que sigo redescobrindo
as sombras senoitadas
sem alquimia nos gritos

faço a metamorfose das águas
iluminando as penumbras
que misturam os gestos ágamos
em caleidoscópio miragal
alucinando o sol
nas flavas manhãs de renascer
neste mesmo lugar
donde parti.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Pintura de António Carmo

Ingredientes do sonho


Separo de mim os átomos
e renasço alógeno
imotável como os deuses arcanos


sem faróis portulanos
imaginando as manhãs amplas
colhidas ao sul nédio
na pele énea da brisa
tangendo o silêncio
perco a corrente
das noites misturando a respiração
e as ondas


no arfar undívago dos gritos
repito as palavras
em miragem fluctígena
do tempo petrificando os fósseis
que vou simulando
na lonjura do barro
e da luz incaptável
como as falenas penetrando as cores e as cinzas


e sigo
num rio sem horas
para além das flumíneas margens
desbravando
a virgindade dos gestos na vasa
fluindo das ideias


vou
reconstruindo estigmas que prolongam
a herança da carne em busca
de trilhos no chão físsil
vou
em gravitação sonâmbula de alquimia
de sonhos e sangue


por fim
no poscénio do corpo
separo
os revezos de mim cambiante
no verbo mestiço que sou
em ruído que resta
repetível
na agilidade dos ecos indizíveis
na seara das palavras exiladas.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Caravançará



nesse teu ruído doce

de engenho antigo

como pérolas rolando em queda livre

sobre o muro de sienito

há um vaivém reflectido na espuma



como caravanas contínuas

transportando a seda e os sonhos

nos azimutes do oriente

ou como dias de quimeras repetidas

nas rotas elipsoidais das cores

fazes a fuga e o regresso

como lábios sedentos sobre a água

limitando o espaço

em circuitos umbilicais

onde se confinam os desejos e os sentidos



em movimentos multiplicados

de afluentes inversos

subo a custo contigo

e quando regresso leve e vazio

já não sei

se sou outro

agora ao ritmo do chão

justapondo sombras

e não reflectido no ritual

dum corpo alucinado

em paragem num caravançará

de viagem incógnita nos olhares

em vaivém nos alcatruzes de palavras

congeminando o meu movimento

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Câmara fotográfica



no teu ventre de escuridão

habitam cinzentos momentos

de páginas parando o tempo



no teu ventre guardaste a resina da luz

para fazer a eternidade

num instante

à la minute

sábado, 30 de julho de 2011

Pintura de António Carmo - A Rosa

TRAVESSIA





ATRAVESSEI O FRUTO COM O LÍQUIDO DOS VERSOS 

E DE SEGUIDA LIBERTEI O VENTO 

DAS NUVENS E DAS AVES 

PROCUREI A MATÉRIA QUE HÁ NA ALMA

SEM CRUZAR AS MÃOS

SEM QUEBRAR OS JOELHOS

  

ATRAVESSEI A NOITE LUNAR COM AS PALAVRAS

ESCRITAS NA SOMBRA

COM0 OS FLUXOS CADENCIADOS DA LUZ

REPETINDO AS PULSAÇÕES DO SISTEMA SOLAR

ADORMECENDO NA LEZIRIA

ONDE NASCEM AS COISAS MATERIAIS

SILENCIANDO OS MUROS NO POENTE



ATRAVESSEI A CINZA DA MADRUGADA

ONDE RASTEJAM OS VENTRES VAZIOS

PREDADORES DA HUMIDADE

QUE REVERTE DAS MÃOS ALADAS

ONDE NÃO SE CATIVAM DEUSES

E OS GESTOS SE PERDEM SEM RETORNO

NO INTERIOR DOS CAULES AMORTALHADOS



ATRAVESSEI OS DESEJOS

COM A NEVE CAINDO DAS MÃOS

E OS ABUTRES POR PERTO


segunda-feira, 25 de julho de 2011

D. Quixote



na longitude abissal de um grito

galopei

a saga das tempestades


amordacei

ventos e astros

venci

batalhas nas quimeras



remendei panos de velas

em moinhos mutilados

pelo orvalho dos sonhos

e das sombras emaranhadas

como fantasmas nos laivos dos olhares



combati de novo

contra as trevas

na hora do zénite

decepei monstros em duelos

e paradoxos em estocadas

de mestre de espadachim



despojei vertigens

flagelando a opacidade dos templos



faço agora o espólio dos estigmas

que me ficaram no pó

para aquém da girândola do vento

domingo, 24 de julho de 2011

Fado (pintura de António Carmo)

Sons gémeos


gui

tarra

si

bi

la

n

do

nos gémeos

sons gemidos do

cordame de artérias

 tangentes como corpo em sexo

tocando a noite na fluidez

das penumbras

da viela


sábado, 23 de julho de 2011

Rodopiando (pintura de António Carmo)

Cacofonia (a A.Ramos Rosa)




A cacofonia da poesia

baila bailando

com os tons dos sons

dum corridinho corrido
 

puladinho


marafado
 

cantado dançado saltado

com o mandador a mandar

e a roda

à roda

no baile mandado

com os cus no ar

das moças moçoilas ainda sem fado

e com muito a sonhar

mas só no altar

rodando mostrando

o alto da saia

e vá de virar

que as ancas girando

redondas de ondas

já fazem pensar

não há que parar

que os olhos dos velhos

relembram os tempos

e os lábios dos moços

já bailam beijando

a cacofonia

   da moça moçoila

                                                           em cada folia.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Entre a Terra e a Lua

Vou partindo inacabado na vastidão
em gestos intemporais e divergentes
como os signos das palmas das mãos


Vou indo
sem saber a distância
e a rota azimutal do paradoxo azul
sem saber da origem e do fim
da simetria do tempo e da matéria
feita na têmpera das cadivas noites
de mistura verve e transe
no tropel do sangue e do nirvana das estrelas


Vou repartindo a voz e o seu timbre
nos quadrantes e quadrívios da razão
como sítio e simbiose
entre o corpo e a luz
como lago agitado
pelo lançamento de um pequeno seixo
que faz as ondas


Vou indo como vento
viajeiro dos gestos
que agitam as velas e os sons
cavalgando o sopro andarilho
de translação e desassossego
deste espaço de sítio e palco
onde o tempo é o chão


Vou partilhando a lama a vasa e a turfa
ilutado nos pântanos
e vou descendo as colinas
das minhas montanhas
onde renasço do pólen e do pó
em réplicas de palavras e vozes
que decantam a geada
para fazer o mel das noites
e o renascer das manhãs nos lugares


Vou bolinando as encruzilhadas
e semeando sílabas
neste espaço cislunar
onde se dilui a nitidez do rosto
em esboço úmbrico de máscara
e amálgama de glóbulos e éter


Vou indo
sem encontrar as palavras certas
que queria deixar na partida.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pintura de António Carmo

PARTILHA DO CHÃO

Uma árvore
pode ser a reflexão
do corpo material que tomba
frente ao espelho azul


Senti hoje a crueldade
de derrubar uma árvore envelhecida
que eu próprio plantei
há anos


Senti que eu próprio também envelheci
cúmplice com o tempo
que levei comigo
entranhando o lenho
no verde de cada primavera
de que farei cinza
eterna


e da cinza
farei o negro da terra
flutuante em cada manhã
que irei habitar
adivinhando a mistura que farei
com a minha própria cinza
partilhando o mesmo chão.